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António Fortuna

Excerto de Laços de Sépia


Fervia o sangue a estes militares desejosos de ver um fim político, económico e social risonho para a sociedade portuguesa. Uma sociedade sem descanso desde a implantação da República em 1910. Golpes e contragolpes, governos atrás de gover­nos e a prosperidade prometida estagnada. O povo, globalmente rural, definhava. A confusão política e militar mantinha-se e os signatários do documento enviado ao ministro da guerra agiram como prometeram. Em fevereiro de 1927, envolveram-se em revoltas no norte de Portugal. O tenente Francisco e as suas tropas avançaram, sem o apoio das instituições com poder. O envolvimento foi complexo e os militares, alheios a interesses particulares, colocaram-se ao serviço da pátria. Avançaram para Amarante, com Braga a avançar sobre o Porto. Fracassaram frente às tropas do governo da ditadura.

Presos e julgados em tribunal militar, os comandantes revoltosos ouviram as sentenças:

— Senhor Francisco Seixas, ser-lhe-á retirada a patente militar, será expulso do exército e condenado a deportação, em Angola, por um período de dez anos.

Francisco ouviu a sentença em silêncio e de cabeça erguida, tentando mostrar que a honestidade e o cumprimento do dever superam as vontades de quem governa as instituições.

Conduziram, de imediato, os prisioneiros para Lisboa, sem terem direito a despedir-se dos familiares, pois o barco de transporte dos deportados e dos degredados levantaria ferro, em abril de 1927.

O degredo e a deportação tinham um fim duplo. Por um lado, satisfazer as necessidades da colonização e, por outro, afastar os criminosos e gente politicamente indesejável. Só se conseguia uma colonização plena com a presença de colonos e mão-de-obra disponível para o trabalho em benefício do país colonizador. Toda a vida dos deportados estaria facilitada se lhes fosse atribuído o papel de simples colonizadores. Contudo, as condições precárias de cumprimento das penas expunham-nos a situações de risco, dificultando-lhes a adaptação ao local de cumprimento da pena.

Francisco e os seus camaradas de armas, habituados a regalias económicas e sociais, viram-se rodeados de assassinos, de violadores, de ladrões, de vadios e de prostitutas, não se lhes perspetivando vida fácil.

Os dias no porão do navio foram duros. Os degredados e os deportados, tratados como se animais fossem, passavam o tempo a lamentar-se da alimentação, da higiene, dos cheiros pútridos e da fome. O pão duro, bem pior do que o pão que o diabo amassou, causava náuseas. A agitação do navio provocava enjoos nos mais fracos, não lhes permitindo conter no estômago a parca ração diária. Valiam os poucos instantes de ar fresco a que tinham direito, duas vezes ao dia, aquando dos despejos dos vasos dos dejetos.

Longo mês durou o suplício vivido a bordo. Alguns não chegaram ao destino. Fracos de pulmões, por terem já estado na prisão anteriormente, morriam, sendo atirados borda fora, envoltos em tecidos velhos e sujos. Restos de velas de navios.

Francisco Seixas, forte fisicamente, aguentava o correr dos dias com a resignação do militar capturado na guerra e que se encontra em campo de concentração. Navegava rumo ao desconhecido, acompanhado dos camaradas de armas, desviando-se das provocações dos restantes prisioneiros, que outras motivações tiveram para se encontrarem naquela situação. De África pouco conhecia. Apenas relatos de companheiros que aí tinham cumprido campanha. Relatos de privação e pouco encorajadores. Terras imensas, inexploradas, com populações de viver estranho, pertencendo a um mundo com modo de ser, de estar e de viver inexplicáveis para humanos, civilizados e ocidentais. Esperava para ver. Ao momento interessava-lhe resistir e guardar forças para as lutas que a nova vida lhe reservava.